Por Mariana Bittencourt
Memórias. Que memórias são essas que habitam o horizonte? Um horizonte tão particular quanto o da Barra da Tijuca? Horizonte que se modifica constantemente, assim como a vida, como as memórias.
Ao assistir Onde o horizonte se move, de Gustavo Ciríaco, site specific realizado na Cidade das Artes, no Rio de Janeiro, fui atravessada por memórias. Acredito que isso se dê pelo fato da obra se modificar pelo espaço, e desse espaço estar tão próximo ao meu convívio. Não digo o espaço “Cidade das Artes”, mas esse horizonte que se move, em que eu me movo. Sempre freqüentei o bairro da Barra da Tijuca, e nos últimos três anos moro em um bairro bem próximo.
Logo no início, a obra itinerante me deixou perdida naquela construção enorme, a Cidade das Artes. Estava parada em um ponto indicado pela organização do evento, sem saber para onde ia, ou se era ali que devia ficar. Pessoas passando por ali deixavam o rastro de dúvida: devo segui-los, ou fico por aqui? Até que uma ação é clara e reconfortante, uma intérprete se aproxima e diz: “Oi”. Ao contar suas histórias e vivências sobre os arredores daquela “Ilha Cidade das Artes”, localizada no meio de grandes vias da Barra da Tijuca, pude me sentir menos perdida, pois de alguma forma, aquelas memórias também se inscreviam em mim.
Uma criança nos convida a ir ao “depois”, e sem saber onde era o “depois”, fomos mesmo assim. Uma voz cantando “Tico-Tico no Fubá”, de Carmem Miranda, bem na minha frente me impede de subir a escada e ir para onde eu achava que estava o “depois”, indicando que o “depois” era ali mesmo.
A visão turva do que está a nossa frente vai sendo aos poucos clareada. A proposta se intensifica na medida em que nos sentimos convidados a adentrar naquele horizonte. E qual é o limite desse horizonte? Quebrar a barreira do limite entre visível e invisível foi fundamental.
Olhando do alto para o grande jardim da Cidade das Artes é possível ver várias pessoas que compunham a obra surgindo naquele grande quadro formado. Uns corriam e se escondiam, como se não se escondessem somente de nós, mas uns dos outros. Outros formavam imagens naquele espaço, onde uns se abraçavam, outros simulavam conversas, mas sempre tornavam a se esconder, dando a sensação de passagem pelo lugar, passagem por um horizonte. Essa proposta perdeu um pouco a força, pois os intérpretes pareciam se cansar com os deslocamentos que faziam. Até que todos foram sumindo do campo de visão de quem assistia, dando lugar a questões que a cidade do Rio de Janeiro está passando.
As referências a esses momentos são colocadas dando ideias das manifestações, as quais puderam ser contrastadas com a música “Crazy in Love”, da “diva” Beyoncé, que como foi colocado por Gustavo durante a obra, chegou de espaçonave aqui, como se nada estivesse acontecendo no “maravilhoso mundo carioca”.
Fiquei me questionando se as memórias sobre aquele horizonte de fato eram dos intérpretes que as contavam. Percebi que não. Mas a maneira como eles as contavam eram muito próprias. Isso se intensificava quando podia me identificar com as histórias. Como a menina que morou a vida inteira no Condomínio Nova Ipanema, o mesmo que uma grande amiga minha, que podia ser avistado se inclinássemos um pouco a cabeça, ou então das tardes andando de bicicleta no Bosque da Barra, bem ali ao lado. Sem falar das memórias que não foram citadas, mas que passaram pela minha cabeça naquele momento, como os engarrafamentos que parecem não ter fim nas vias que circundam a Cidade das Artes. O almoço de aniversário no restaurante que tinha próximo ao shopping, que já está fechado. As mudanças sofridas por aquele horizonte com tantas obras. Isso me fez pensar que memórias surgiram em outros países em que essa obra foi apresentada.
Onde o horizonte se move foi realizado em outras cidades, como Guimarães (Capital Européia da Cultura) e Londres (UK). Como site specific, as situações propostas pela obra são sempre remodeladas a partir das singularidades da cidade trabalhada. É interessante tentar pensar quais memórias surgiram nas outras cidades. No Rio de Janeiro, a obra contou com a participação de voluntários, moradores próximos às áreas da Barra da Tijuca, que chegaram ao trabalho através de convocatória online. Talvez, uma qualidade singular da coreografia de Ciríaco no Rio esteja justamente na criação de vínculos e acordos entre as estruturas já pré-moldadas da obra, os voluntários e as memórias locais.
Identifiquei uma fragilidade no trabalho com relação aos dispositivos utilizados pelo artista para nos movimentarmos pelos espaços, os quais não foram muito eficazes. Isso não seria um problema se a escolha do artista, quando a obra não seguia o curso imaginado, não envolvesse guiar-nos como um grande rebanho, uma vez que, este nos acompanhava por todos os pontos percorridos e, muitas vezes, vinha a nós pedindo que nos colocássemos em certo lugar, ou apontava que já podíamos sair dali, sem nos dar muita liberdade para ser afetado pela obra.
Esse dispositivo impõe, assim, uma forma de pensar a participação como mera obediência ao comando dado pelo diretor em cena, deixando pouco espaço para a experiência singular de quem entra no jogo sugerido. Se a proposta era para que as pessoas não ficassem “perdidas” na obra (o que não deveria ser a priori um problema) há uma ingenuidade aí, pois as pessoas ainda se perdiam. Gerar atenção para a contemplação de um horizonte está para além da dupla comando-obediência. Outra tensão é necessária. No entanto, é preciso lembrar que minha experiência com a proposta de Gustavo Ciríaco se deu na estreia do trabalho na Cidade das Artes, o que, provavelmente, justifica a fragilidade quanto os arranjos entre formas de composição e participação da obra. Contudo, os locais selecionados foram interessantes, tanto pela arquitetura e pontos de vista formados sobre o próprio espaço – Cidade das artes e Barra –, como pela visão do que estava fora dali.
Restaram memórias. Memórias do passado, memórias daquele momento efêmero, e memórias que ainda estão se formando a partir de outros horizontes, outros pontos de vista, e outras relações, se movendo a todo instante, indo além do que posso ver, mas sempre aparecendo no agora, em forma de memória.
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Este texto foi produzido com a orientação do Professor Sérgio Andrade, a quem agradeço pelo acompanhamento durante o processo de escrita.
Sobre a autora: Graduanda do curso de Bacharelado em Teoria da Dança da UFRJ participa do programa de estágio em Teoria da Dança. Produtora Cultural do projeto de pesquisa Arriscado: um diálogo entre dança e acrobacia do Departamento de Arte Corporal da UFRJ.
Foto: CLAP
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