Por Sérgio Andrade

 

Uma cadeira, uma mulher, uma música antiga, algumas memórias e uma blusa listrada azul de mangas cumpridas estirada no chão. Ela veste a blusa.

O espetáculo Finita, de Denise Stutz, partilha assim um encontro com alguém – alguém que poderia ser um amigo distante ou até mesmo eu ali sentado, um outro qualquer convidado a imaginar uma dança sem ver. Ao longo da performance, Denise Stutz aciona as memórias de uma carta enviada por sua Mãe, que também já era avó de Guilherme, único neto, a qual lhe dissera escrito: “Gosto dessa portuguesa que ao invés de dizer saudade diz nostalgia”.

É em tom de nostalgia que ela dança, contando os estalos dos dedos, contando a pulsação dos seus passos e também nos contando as imagens todas que estão para acontecer nesse encontro marcado. Conta “para não escutar o silêncio”, a distância abissal entre um passo e outro, uma memória e outra, ela e o público. E assim ela nos repete: “é preciso contar”.

A dança de Denise parece uma pequena máquina de escapes. Meio as suas memórias, a bailarina, que em sua trajetória carrega tantos encontros e experiências na dança faz citações a espetáculos que poderiam dançar aquele estar com o outro no escuro: “um chão carregado de cravos vermelhos“, “um espaço que de repente ficasse todo preto de gente“, “um palco de pelúcia marrom“, ou “um, e não 100 gestos, que fosse capaz de dizer tudo”. Denise assim nos convida a imaginar que sua dança poderia ser qualquer dança. Qualquer uma que celebrasse o encontro. Uma dança assombrada pelas danças de outros amigos e pela lembrança da loja de discos que não está mais entre a Barata Ribeiro e a Santa Clara, no bairro de Copacabana – a qual eu nunca conheci, pois quando me mudei para o Rio ela já não estava mais lá.

Mesmo sem ter vivido aquelas mesmas memórias que Denise, sem ter assistido Bagdad Café, mesmo não sendo personagem de quase nenhuma daquelas cenas citadas, em algum momento posso ser capturado a dançar com ela. Seja por memória individual ou coletiva, quem dança com Denise é convidado a pensar no singular encontro que é estar ali. Sim, é certo que assim o é toda dança: singular. Mas ao nos convidar a ativar tantas imagens que nunca se completam na agoreidade de sua performance, Finita se coloca como uma máquina especial de fazer des-aparecer danças tão outras (dos outros) que me fez crer, por instantes, que poderiam não estar ali nem eu, nem aquelas coisas invocadas. Mas eu estava e aqueles fantasmas todos também. Disso, a contingência criada por Finita não me deixava esquecer.

 

[…]

 

Após o espetáculo eu não consegui falar muito a Denise. Não sabia o que ter que dizer. Afinal, o que se tem que dizer a alguém que nos conta nostalgias tão suas? O que dizer diante as perdas de alguém ou diante do que passou? Seria uma dança, uma carta, uma biografia, a perda?

Assisti Finita na tarde do dia 25 de outubro no Festival Panorama 2013, durante a sessão para o Programa Educativo do Festival, na sala acústica da Cidade das Artes (RJ). Era a estreia do Festival, para poucos. A plateia estava composta de uma série de jovens da Rede Municipal de Educação do Rio e dentre eles estavam alguns alunos da Escola Estadual Dr. Alberto Sabin que tinham algum grau de surdez. Como boa parte da dança era falada, ao lado, no canto esquerdo do palco, uma intérprete de libras traduzia as palavras de Denise. Aqueles que assistiam a intérprete de libras traduzindo as “contagens” e “contações” de Denise, não conseguiam ver, ao mesmo tempo, os outros gestos rascunhados pela bailarina que dançava enquanto falava. Olhar as libras (à esquerda, quase na penumbra), olhar a bailarina (à direita). Lá e cá, entre elas, outra vez, aquele vazio, o qual Denise disse preferir encher de contagens para não escutar o silêncio – que nunca foi ausência de som, nem de sentido.

 

[Quais trilhas sonoras tocam quando você se sente só?]

 

Na saída da sala acústica, alguns participantes do Laboratório de Crítica[1] iniciaram uma discussão sobre a contingência daquela tradução que em algum momento criava uma hierarquia entre o som que se falava em detrimento do corpo que se movia no espaço. Mas não seria “próprio” da nostalgia tal improbidade ou impropriedade, perda ou rapto, parasitologia ou assombro? No encontro com o outro, não estaríamos desde sempre todos surdos? As ruínas de pensamento – memórias – não são esse gap espaço-temporal o qual não nos deixa nunca viver plenamente a agoreidade, mesmo que essa agoreidade seja uma dança? Essa não seria a dança mesma, a coisa acionada por Denise Stutz naquela tarde?

Talvez porque essas perguntas todas me roubavam a atenção enquanto [eu] [ela] dançava, que no corredor, após o fim de Finita, que ao mesmo tempo era intervalo entre uma performance e outra da programação do Festival, quando reencontrei Denise não soube o que lhe dizer [e esse lhe pode ser transferido a você que lê agora].

 

[Não soube o que lhe dizer, repito.]

 

Engraçado que durante a apresentação de Finita, algumas poucas horas antes desse reencontro no corredor, ela veio até mim, muito próxima, sentou numa cadeira vazia na plateia, logo a minha frente, e me perguntou se aquela dança que estava para acontecer não poderia ser como uma das tantas danças que vi nos palcos cariocas nos últimos dois anos. Melhor, ela não me disse diretamente quais danças eram essas, mas, pelas imagens em ruínas que me foram acionadas quando interpelado, sem titubear, lhe acenei a cabeça dizendo “sim”. Sem demora, pensei instantaneamente que naquele palco vazio poder-se-ia tomar lugar uma dança de Lia Rodrigues, de Marcelo Evelin, de Marcela Levi, Dani Lima ou talvez minha. Poder-se-iam também os cravos vermelhos de Pina Bausch, os quais só vi em vídeo pela internet. Poder-se-iam, ainda, outras tantas que não consegui capturar enquanto dançava. Pensei sem pensar: “Sim, sim, Denise”. Poder-se-ia qualquer uma, desde que fosse um encontro como esse que é singular. Uma dança pode sempre ser qualquer outra, desde que ainda singular.

Mas no corredor, longe do palco, mesmo assombrado por todas essas danças, quando reencontrei aquela mulher, que nada me perguntara sobre seu solo naquele momento, somente a abracei, dei-lhe um beijo desarranjado e disse sorrindo: “finita”.

Finita aciona a acontecimentalidade das memórias que escapam, das distâncias que de tão longe nos perseguem lado a lado. Há buracos. As coisas faltam e as mães, as mulheres finitas, também… A dança faz [a] falta. O fim, como o fim de um espetáculo, também faz falta. O som que tocava numa das cenas, inclusive, falhou. Engasgo[u].

 

Finita me faz lembrar, talvez, que as coisas quando faltam podem engasgar e que um certo mutismo, mesmo cheio de “contagens” e “contações”, é incondicional.

 

Ao seu comando, apagaram-se as luzes da plateia, acenderam-se as luzes do palco. E, agora, nele o público foi convidado a imaginar-dançar a dança, como aquele que tenta colar e saltar as ruínas todas lançadas por um corpo ao som da única música que, em silêncio, se repetiu em todo o espetáculo.

 

[Antes de começar a escrever esse texto, me perguntei em qual tom deveria desenha-lo. Como quando se escreve uma carta para alguém distante, alhures, e que não se sabe se e como ela vai chegar, mas ainda há o envio. Ou, ainda, a dúvida que se faz quando se escreve para o outro que mesmo estando ao meu lado agora enquanto escrevo, permaneceria como, lado a lado, uma cadeira vazia na mesma fileira da plateia de um teatro. Esse “ele”, “ela” ou “it”, que envio nunca estará aí plenamente junto e acordado – essa palavra tão dupla que ao mesmo tempo remete ao despertar e ao contrato que se faz com alguém, no qual se assina e se diz: “está acordado entre as partes”. Como se assina um contrato estando incondicionalmente longe? […] Certamente inventei outros parasitas, traças, que não retornam aos escritos de Finita. Você poderia ouvir as palavras que eu digo? Espero que não. Espero que estejamos sempre surdos e que precisemos das traduções infinitas, com ou sem libras, que nos criam ainda mais buracos e nostalgias. Talvez seja esse um dos tons que aqui tentei assinar: um perdão pela falta que se fez naquele reencontro da tarde de Sábado].

 

Assino.

 

Sobre o Autor

Sérgio Andrade é professor do Departamento de Arte Corporal da UFRJ, dos cursos de Bacharelado em Teoria da Dança, Bacharelado em Dança e Licenciatura em Dança. Doutorando em Filosofia pela PUC-Rio, Mestre em Filosofia pela PUC-Rio, Mestre em Artes Cênicas pela UFBA e Licenciado em Dança pela UFBA. É pesquisador e artista de Dança e Performance. Desde 2012 coordena o Laboratório de Crítica e colabora com o Programa Educativo do Festival Panorama.

 


[1] O Laboratório de Crítica é um espaço de discussão dentro do Festival Panorama que coordeno desde o ano de 2012, a partir do convênio entre o Panorama e o curso de Teoria da Dança do Departamento de Arte Corporal da UFRJ. Nesse dia de encontro, nos diálogos pós-espetáculo estavam: Alexandre Wilson (Xandu), Alface Cátia Leitão, Lígia Tourinho, Mariana Bittencourt, Mariana Callegario, Neidimar Santos, Silvia Chalub e eu. Na discussão, meio a tantos comentários, lembro-me que se formularam algumas perguntas se a intérprete não poderia estar mais próxima a Denise e se perto ou longe as distâncias entre elas permaneceria desde sempre. Assombrados por um dos textos de Derrida que lemos, o “Pensar em não ver”, lancei como pergunta: é preciso, é possível, ver plenamente o desenho do corpo que dança?

Foto: CLAP