A Dramaturgia Fina de Raimund Hoghe

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Silvia Chalub

 

 

Uma vez por ano, desde 1991, o Festival Panorama ocupa espaços diversos da cidade do Rio de Janeiro com uma rica programação voltada aos amantes da dança e da performance contemporâneas. Acompanho o festival há apenas três anos, com a curiosidade de uma iniciante na área e com todas as incertezas de quem entra em um terreno onde nada está dado a priori, onde os sentidos se conformam na própria busca e o processo é cada vez mais largo e profundo. A cada espetáculo, a cada texto, a cada discussão, tudo se torna mais interessante. E justamente quando o tema ‘dramaturgia em dança’ me abria novos horizontes, assisti a uma joia do festival, An evening with Judy.

 

Passar uma noite com Judy Garland e Raimund Hoghe, criador e performer de An evening with Judy, foi daquelas coisas preciosas, que às vezes nos acontecem. Para além de dança, teatro ou performance, Hoghe trouxe à cena a materialização de uma paixão, construída na inter-relação dos meios disponíveis para realizá-la e capaz de sensibilizar plateias. Uma trama dramatúrgica a um só tempo meticulosa e afetiva. Para mim, quando isso acontece é algo tão único que chamo de “magia poética acontecendo”.

 

Raimund Hoghe nasceu em 1949 em Wuppertal, cidade onde Pina Bausch dirigiu, de 1973 a 2009, ano de sua morte, o Tanztheater Wuppertal. Será que ele, assistindo de perto a revolução que acontecia na dança da Alemanha, achou que seria um bom desafio, para dar forma à sua vida, se preparar para estar em cena? É que Raimund nasceu com um grave problema de coluna, uma deformação que chama a atenção e, imagino, deve causar dor. Outro dado também merece nota: o coreógrafo cresceu em uma Alemanha pós segunda guerra mundial, saindo da destruição total para a construção de um novo mundo.

 

O fato é que Hoghe trabalhou durante a década de 80 como dramaturgo de Pina Bausch e a partir de 1989 passa a criar suas próprias obras. An evening with Judy, que estreou no final de 2013 e foi apresentada em diversas cidades do mundo, é a última peça de uma trilogia sobre cantores. A primeira, Meinwarts, é dedicada ao tenor Joseph Schmidt e a segunda tem como título o endereço onde Maria Callas foi encontrada morta, em Londres, 36, Avenue Georges-Mandel. Além de cantar, podemos lembrar que os três personagens compartilham trágicos finais de vida. Judy Garland, segundo entrevista que Hoghe deu ao jornal Público, quando esteve em Portugal, o atraiu principalmente porque, apesar de estar em Hollywood, nunca teve a beleza nem o glamour das outras estrelas. “Impossível eu não me identificar com isso”, disse ele ao jornal.

 

An evening with Judy é uma cerimônia feita de gestos precisos que evidenciam a fascinação que a vida de Garland (1922-1969) exerce sobre o coreógrafo. A tessitura fina de sua dramaturgia entrelaça a complexidade do sujeito Raimund Hoghe, identificado com a vida da estrela hollywoodiana de segundo time, que ele soube ser chamada de “minha corcundinha” por seu chefe na Metro-Goldwyn-Mayer, com a memória que a história e música de Garland podem evocar em cada um de nós. A materialidade da relação entre as diversas subjetividades presentes (criador, criatura, espectador) se dá em cena e preenche o palco da elegante Sala Cecília Meireles, local perfeito para apresentação, um acerto da curadoria.

 

Hoghe está quase o tempo todo sozinho, apenas com uma maleta que arrasta pelo palco e de onde retira e guarda objetos cênicos e peças do figurino, que ele monta, desmonta e remonta, em acordo com as diversas fases da vida e da carreira de Garland. A ordem cronológica é seguida e pontuada por elementos que o coreógrafo e intérprete utiliza para compor a cena. E eles são diversos.

 

A voz de Judy Garland guia o desenrolar da trama. Falando em programas de rádio ou TV, ela revela a trajetória da menina que de repente se viu famosa (vide o estrondoso sucesso de O Mágico de Oz, filme que protagonizou aos 12 anos), as relações amorosas atribuladas, incluindo aí seus filhos e maridos, e a decadência física e emocional. Mas Hoghe lança mão também do registro das vozes de seus interlocutores, que perguntam, comentam, vasculham e exibem sua vida em redes de rádio e de TV. Esses episódios são acompanhados pela movimentação do performer, que se vale de signos do glamour da época para assinalar com ironia as contradições da fama e do sistema de Hollywood, que cria e massacra estrelas com engenho e sem piedade.

 

Enquanto as falas que escutamos desvelam aos poucos o drama de Judy Garland, Hoghe sustenta seu porte extravagante andando de salto alto de um lado a outro do palco, com poses para os paparazzi, acenos, risos forçados, mãos para o alto, corpo contra a parede – sem nunca cair na caricatura, seu trabalho é delicado. A imagem de Garland é encarnada por Hoghe com gestos e movimentos sutis, enriquecidos pelos adereços que ele saca da maleta pousada no centro do palco. São minúcias que, repetidas de modos ligeiramente desiguais, ajudam a construir o ritmo dramatúrgico do espetáculo. As intervenções criam novos contextos e entendimentos dentro da cena.

 

A música, claro, tem grande destaque. Quando surgem as canções que Judy cantava, uma onda nostálgica toma conta do teatro. Over the Rainbow, canção-marco na carreira de Judy Garland, funciona quase como um refrão do espetáculo, mas sempre que retorna, mostra um pouco mais do fim para onde caminha a estrela: uma overdose de tranquilizantes.

 

Em determinados momentos, Luca Giacomo Schulte surge para ajudar a compor uma ação. Muito alto e magro, sua presença cria um contraste interessante com Hoghe, que mede 1,51m. Outra contraposição acontece nas poucas vezes em que o bailarino Takashi Ueno vai ao palco. Em uma delas, ele entra como Liza Minelli e, junto com Hoghe, os dois aludem a uma apresentação em que mãe e filha cantam em duo. A dança de Ueno é leve e efusiva, ao contrário da dança de Hoghe, realizada com movimentação sucinta e apurada.

 

Com An evening with Judy, Raimund Hoghe reafirma seu domínio da cena e restitui à estrela seu brilho fugaz.

 

 

 

 

Silvia Chalub estuda dança (prática e teoria) e participa do Laboratório de Crítica no Festival Panorama desde 2013.

 

 

Texto produzido no LabCrítica no Festival Panorama 2015.

 

Foto: An evening with Judy, de Raimund Hoghe (C) CLAP[/unordered_list]