A corda, o heptágono, o furor
Carlos Eduardo Mello
Quer a hipótese seja correta ou não, o importante é que ela seja verificável. Pode-se fisiologicamente reduzir a alma a um novelo de vibrações (…). O importante é tomar consciência dessas localizações do pensamento afetivo. Um meio de reconhecimento é o esforço; e os mesmos pontos sobre os quais incide o esforço físico são aqueles sobre os quais incide a emanação do pensamento afetivo.
Antonin Artaud
No texto da curadoria do Festival Panorama 2015, chama nossa atenção alguns trechos que os idealizadores do festival utilizam para contextualizar a temática, o contexto sociocultural e artístico em que este acontece. Uma aposta no inesperado, no que não se encaixa, no que faz o público pensar diferente sobre coisas diferentes. Aposta, sobretudo, na frase da escritora e ativista americana Alice Walker: tempos difíceis exigem dançar furiosamente.
Ao presenciar os espetáculos Durational Rope, do Quarto Artist-Duo e Monotonia de Aproximação e Fuga para sete corpos, do grupo Cena 11 Cia. de Dança, penso na profusão de sentidos que o adjetivo furiosamente ganha diante dos tempos difíceis na atualidade. Igualmente, a profusão de sentidos que este adjetivo adquire na variedade de linguagens e estilos que cada um dos espetáculos encarna.
O termo furiosamente encontra, em sua etimologia, uma correlação com a palavra furor – causar entusiasmo, provocar sensação. Encontramos aqui um sentido, dentre a profusão de sentidos que a palavra furiosamente possui, para modularmos nossa experiência estética, corporal, sócio-política. Como espectador e indivíduo, artista e criação, obra e processo. Os dois espetáculos modulam, através da singularidade que cada um apresenta, esses polos, em favor da sensação, do inesperado, de uma atmosfera de “não sei o que” acontece, mas, acontece. Tem corpo. Choque entre corpos e furor.
Choque e furor, a partir do século XX, caracterizavam estilos e estratégias artísticas de provocação, escândalo, um chacoalhão para despertar corpos atônitos na ambiência da Segunda Guerra e todo o contexto histórico. Dali, pulamos para o século XI, a desmedida quantidade de informações, outros tipos de escândalo e organização sócio-política que gerem o tempo, os modos de sentir, as subjetividades tornadas hegemônicas.
Durational Rope e Monotonia de Aproximação e Fuga… chacoalham. Cada um, a seu modo, é artifício de uma atmosfera de “não sei quê” que acontece, mas acontece. Atingem nossos corpos, provocam. Entretanto, pontuo que o sentido de furor e choque que as vezes tem o escândalo como artífice, não é o mesmo que esses dois espetáculos apresentam.
Provocar sensação, injetar um outro tempo no tempo das nossas subjetividades saturadas de estímulos sensoriais midiáticos. A possibilidade de criação de outros modos de sentir e contemplar ativamente são o furor dos artistas das obras citadas, encontrando brechas para produzir estímulos sensoriais de outra ordem, um corpo a corpo que faz pulsar uma outra vida. A brecha é a permanência, a duração, a repetição, que no desenrolar dos espetáculos, produzem vibrações e chacoalhões em cordas, guizos, sensores de aproximação. Uma aposta na vitalidade de cada singular corpo e seus gestos tornados infinitos no desenrolar de cada trabalho.
Em Durational Rope, uma corda preta de mil metros sobre um palco branco. A dupla de performers vestem calça e moletom pretos, encimados por um capuz de mesma cor. Sob o rosto de cada artista, uma tela branca. Cores polares, um branco e o preto que, ao longo do processo, veremos tornarem-se elementos que destacam o gesto, o movimento e a dança que a dupla de artistas e a corda executam – se permanecermos nela o tempo suficientemente singular de cada espectador. O capuz preto, a tela branca, a superfície branca compõem um leitmotiv: a repetição de modos de se puxar uma corda e dispor a mesma sobre o palco. Gestos que, ao longo das quatro horas de trabalho, disparam percepções de outra ordem. Já não sabemos quem puxa quem, quem vibra o quê, quem promove o gesto em quem.
Disto sabemos: a corda vibra. Os microfones preparados a captar micro sons reforçam as percepções da corda vibrante. Trata-se de uma cordiografia, como Anna Mesquita e Leandro Zapalla definem o trabalho. É interessante darmos destaque ao título do trabalho. Nele, o que dura é a corda, ela é o elemento que conecta a todos, uma linha que traça o movimento dos performers ao mesmo tempo em que é traçada. Paradoxalmente, para que a corda dure, os gestos devem durar, o olhar e a atenção devem durar.
Neste durar de todos ali presentes, a unicidade do gesto de puxar a corda e sua repetição atlética se dissipa. Um paradoxo perpassa a obra: a “simplicidade” do objeto cênico corda coabita com a complexificação que vai emergindo na relação dos artistas com ela. Nesse dissipar, a obra vai se formando um turbilhão de micropercepções. Os macromovimentos dos gestos de puxar a corda e os ricocheteios que a corda dá nos corpos – dos dançarinos, dos nossos estão produzindo no espectador uma mutação de sentidos da contemplação, que não é um observar apenas, mas uma persistência junto pela qual a contemplação do processo se torna ativa. Somos chamados a disponibilizar o nosso corpo à profusão de variações intensas que ocorrem no trabalho cordiográfico.
A força do trabalho de Anna Mesquita e Leandro Zapalla está na desconstrução de corpos formatados e conformados a certas linguagens, certos regimes de sensação, em favor da construção da conexão que a relação cordal promove. Conexão, cordiografia, cordi, coração. O esforço físico e a emanação do pensamento afetivo, um atletismo afetivo, como define Antonin Artaud.
O furor deste atletismo afetivo, presente a cada revezamento de modos de puxar (e ser puxado pela) corda, convoca o espectador a suspender seus regimes predominantes de sentir. Um furor da dupla de artistas nos ligando ao furor de durar junto e partilhar a provocação de sensação, um contínuo de outra ordem espaço-temporal, uma contemplação ativa. Um exercício furioso.
Em Monotonia de Aproximação e Fuga para Sete Corpos, o furor é heptagonal e um paradoxo atravessa a obra. O público é disposto em sete blocos de arquibancada e, entre eles, veios por onde entram e saem os dançarinos. Estamos diante de um monotom: uma nota de piano insiste, guizos e sensores de aproximação tocam conforme os dançarinos revezam entradas e saídas, aproximações e distanciamentos. A sobreposição destes monotons e a fuga e aproximação dos dançarinos num apitar caótico dos guizos e sensores, produzem confusão nos nossos esquemas sensoriais. Aqui o paradoxo: a monotonia está preenchida de insaturações.
Entre monotonia e insaturação, o espetáculo se desenrola por entre os veios e o centro do heptágono. O figurino dos dançarinos mistura roupas cotidianas, pinturas no rosto evocando arenas de guerra e de espetáculo e, ao mesmo tempo, um corpo ameríndio. Eles estão desplugados fora da arena e altamente plugados dentro dela, com movimentos que oscilam entre o bizarro, o lúdico, o sutil e o impacto no chão.
A dramaturgia do espetáculo se complexifica. Os monotons sobrepostos ganham variâncias, os sensores de movimento as vezes silenciam, o movimento ganha corpo e reveza corpos. Solos, duos, trios, até comporem uma massa amorfa de corpos de singular movimentação. Em outros instantes, somos surpreendidos com aquele estilo da Cia. Cena 11 que permanece: o impacto dos corpos subitamente lançados no chão. Um quicar que testemunha a vitalidade do corpo e a insistência – porque não, a aposta – na potência dos chacoalhões, na concretude de corpos com outra organicidade que disparam em nós a concretude do nosso corpo e a nossa organicidade. Afinal, não estamos na plateia, estamos no heptágono, no palco, acercados dessa monotonia em aproximação e fuga, testemunhando a arte de “reduzir a alma a um novelo de vibrações”.
A nota de piano vira fuga bachiana. Melodias emergem, coreografias se revezam, os corpos giram. Plugados, desplugados, uma aposta na potência de transfiguração dos corpos no limite da exaustão a cada fuga e aproximação. Ao sair dos veios do heptágono, os bailarinos apagam numa cadeira, como se estivessem, justamente, desplugados. Entre a monotonia, a sobreposição de monotons e a intensidade de movimentos, fazem parecer-nos que respirar é possível.
O heptágono torna-se um corpo remexido, reordenado. Nesta modulação de fuga e aproximação e na insistência dos monotons, esse jogo de repetição configura um heptágono afetivo, de afetação corporal, que encerra em si mesma germens de variância que geram as matérias do processo dramatúrgico da Cia. Os corpos coreografam e são coreografados pelos guizos, pelos sensores de aproximação, pela nota de piano insistente.
O alargamento dos limites do movimento e a mistura entre o quê coreografa e o quê é coreografado reverberam no alargamento das nossas subjetividades. O heptágono corporal nos coloca em questão as categorias da percepção, da vida, da subjetividade. Voltamos a uma atmosfera de fusão, com fusão, que atravessa a corda e o heptágono.
O furor, ou antes, a fúria do dançar para tempos de crise, presentifica-se na sutileza do gesto e na concretude de sua execução. A provocação de sensações de outra ordem que essas artes corporais encarnam, colocam-nos em meio a uma certa política de sensações que reverberam para além do espetáculo. Em presença de um outro espaço-tempo cordal e heptagonal, nunca há isoladamente monotonia, gestos, saturação, divisão. Somos convocados a uma outra relação, pautada justamente pela conexão de elementos em relação, de estilo e força paradoxais.
O furor pode ser uma pausa.ma inspiração em tempos de crise.
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Carlos Eduardo Mello é pesquisador do movimento, corporeidade e subjetividade. Atualmente pesquisa as ideias de Hubert Godard, corporeidade e teoria e história da dança. Psicólogo pós-graduado em “Clínica e Subjetividade” pela Universidade Federal Fluminense, com especialização em “Terapia Através do Movimento” pela Escola e Faculdade Angel Vianna.
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Texto produzido no LabCrítica no Festival Panorama 2015.
Foto: Durational Rope, QUARTO (C) CLAP
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