Duas vidas em uma noite

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Julia Baker

 

Raimund Hoghe é um indivíduo singular: um sujeito com uma corcunda proeminente dificilmente passa despercebido pelas ruas ou no palco. Seu físico diferenciado o levou a questionar o que é entendido como normal e procurar sujeitos únicos como matéria para seus trabalhos. Partindo dessa intenção, de conhecer o estranho, Hoghe se aproximou da história de Judy Garland, ícone do cinema norte-americano.

 

Imortalizada pelo papel de Dorothy no filme “O Mágico de OZ”, Judy teve uma vida marcada por dificuldades. Não era considerada uma pessoa bonita (o que, para quem vive em um ambiente de glamour e de aparências, pode causar imenso incômodo), foi explorada pelos seus pais e morreu com apenas 47 anos devido a uma overdose. Hoghe e Judy possuem em comum algo muito marcante para o coreógrafo: a baixa estatura de 1,50m.

 

O imaginário de quem era Judy Garland levou Hoghe a transformar seu fascínio por ela no espetáculo An Evening with Judy, que esteve na programação do Festival Panorama 2015, na Sala Cecília Meireles. Hoghe se transforma na atriz através de poucos elementos, apenas uma saia, óculos escuros e diferentes lenços. A trilha sonora ajuda a narrar e revelar as diferentes identidades de Judy: sua figura pública – constantemente vigiada e fotografada pela imprensa e fãs, sua habilidade como atriz e cantora – sempre pronta para entreter a sua plateia; e sua vida privada – solitária e isolada de todos.

 

Uma mala, é essa a cenografia e figurino do espetáculo. Dentro dela Hoghe parece transportar uma infinidade de possibilidades que são traduzidas nos diferentes mundos de Garland. Na mala estão os discos, as personagens, a vida pública e privada. Em uma simples mala encontramos a pluralidade que era Judy. Pequenas mudanças de figurino, o uso de um salto alto ou de uma echarpe colorida trazem para a cena faces diferentes da atriz e momentos diferentes de sua vida.

 

A simbologia da mala também é forte na vida de Raimund e podemos imaginar ser uma das razões da escolha desse elemento para o espetáculo. Hoghe apresenta seus trabalhos em festivais pela Europa e também realiza longas turnês. Grande parte do ano sua vida se dá na estrada, sem tempo para retornar ao lar e descansar. A necessidade das constantes viagens a trabalho fez com que o elemento mais familiar se torne o que carrega consigo a cada viagem, sua mala – protagonista de todas as nossas viagens e fonte de preocupações (medo de perda, de extravio ou excesso de bagagem); a mala de Hoghe é sua casa sob rodas durante um bom período de cada ano.

 

Essa casa é transportada para o palco e permite a presença de elementos para recriar uma vida, a vida de Judy. Uma mala, um compartimento, uma corcunda ou uma canção, elementos simples que identificam que marcam esses dois personagens de maneira visceral.

 

O espetáculo tem 120 minutos de duração, o que pode ser considerado extenso para uma peça que é praticamente um solo – existem participações pontuais de Luca Giacomo como um paparazzi e/ou fã que persegue a estrela com suas lentes fotográficas e a pontual mais vigorosa presença de Takashi Ueno realizando movimentos de dança intenso. O espetáculo está sempre preenchido com movimentos sutis, não existe momento para desviar o olhar ou escapar do que nos é mostrado em cena. São pequenos gestos, pequenas revelações que Hoghe nos faz ao longo do espetáculo embalado em diferentes momentos pela canção Somewhere Over the Rainbow, música que marcou a carreira de Judy. A presença dessa música é uma das constantes do espetáculo, mas também presenciamos diálogos de filmes e outras canções interpretadas por Judy. A trilha sonora é um fio condutor no espetáculo. Ela nos guia durante diferentes momentos da carreira da atriz e nos faz embarcar em seus filmes e sua vida. A palavra surge com força em um espetáculo com movimentos econômicos de seu principal performer.

 

Uma biografia de Judy é criada através das ações e movimentos de Hoghe. Ele revela uma personagem frágil, que não queria lidar com a fama mas que estava sempre preparada quando a plateia lhe convocava.

 

 

Julia Baker é produtora e curadora. Tem interesse nas artes do corpo em geral. Atualmente trabalha na gerência de conteúdo do Museu de Arte do Rio (mar) e estuda o mercado da arte em seu mestrado.

 

 

Texto produzido no LabCrítica no Festival Panorama 2015.

 

Foto: An evening with Judy, de Raimund Hoghe (C) CLAP[/unordered_list]